
Big Eyes: jardim do pecado cultivado
Olhar para além do quintal de casa geralmente não é uma programação sóbria, recomendável e frutífera.
Adão e Eva tentaram. Quiseram conhecer mais do que sua natureza admitia, pois feitos integralmente do bem – vida, comunhão com Deus e liberdade, acharam que poderiam conhecer o mal sem se contaminarem. O resultado foi desastroso, o pior possível: morte, afastamento de Deus e escravidão do pecado.
Nos primórdios da humanidade, nossos pais erraram porque quiseram conhecer o mal em si. Viviam no jardim da bem-aventurança eterna, mas seus olhos desejavam mais. Nem todo conhecimento nos é plausível e saudável. Devemos nos afastar de toda sombra ou aparência do mal, pois o ato de conhecer nos faz participantes de seu objeto, sejamos crianças, jovens ou adultos. Ninguém é maduro suficiente para o contato incólume com o mal.
Posteriormente, em um momento de insanidade moral, um grande rei também tentou ir além de seus jardins para espiar uma mulher fora dos limites do muro de seu reinado.
Seu nome era Davi, Rei de Israel. Aquela autoridade política e religiosa errou porque quis ter um bem natural alheio. Nem todo bem deve ser almejado e conquistado, apenas aquele que é justo.
Aqui, uma pausa para explicação. O uso da expressão “bem natural alheio”, referindo-se à mulher casada com outro homem, está sendo usado no texto numa perspectiva cristã, segundo a qual o casamento faz com que tanto o homem quanto a mulher tornem-se um do outro em amor, de modo livre, espiritual e corpóreo . Daí considerar, no sentido matrimonial, os prazeres conjugais como bens recíprocos do homem e da mulher.
Os resultados desse disparate são vários e extremos, de modo que deixei para citá-los apenas em nota de rodapé1 .

Embora evidentes, os exemplos acima e tantos outros que poderiam ser enumerados ao longo da história não foram suficientes para moralmente nos educar. Hoje, continuamos a olhar sobre os muros de nossas casas, além de nossos jardins de bem-aventurança.
Para isso, não precisamos mais morder um fruto apetecível e proibido, que espiritualmente abra nosso entendimento para a contemplação do mal (como fizeram Adão e Eva). Não precisamos mais subir no alto de nossos palácios para podermos apreciar uma vista agradável a turvos olhos e proibida (como fez Davi).
Atualmente, a curiosidade pelo mal e a insaciável vontade de prazeres pobres e efêmeros se tornaram algo natural, valorizado e incentivado. O mal já está aí à vontade no mundo em escala cada vez mais assombrosa, como uma espécie de suvenir moralmente legítimo e disponível para volitiva e íntima aquisição, a depender do gosto pessoal de seus clientes. A máxima relativista “não façais juízo de valor, pois todo valor é relativo” alcançou seu ápice, impedindo que a moralidade divina aja consicentizando-nos e livrando-nos do mal inconsciente, não discernido.
Um desses suvenires são os reality shows de sucesso em nossa sociedade.
Basta ligarmos nossas TV’s ou Smartphones para que nossos grandes olhos se abram ao máximo ao se sentarem de camarote numa “casa com muitos Davis, Urias e Bate-Sebas”, a fim de verem vidrados (de perto), bem como analisarem e julgarem suas relações comuns e íntimas, suas intencionalidades, suas ações com seus equilíbrios e descontroles, seus discursos teóricos sobre a vida, suas justificativas, suas defesas, suas dissimulações, suas verdades e sobretudo o jogo humano ou desumano ali posto.
Inusitado e inacreditável é que fazemos isso ao lado de nossos cônjuges, pais, mães, filhos e filhas, como se estivéssemos a desfrutar de um bom e inofensivo entretenimento, passível de comunhão familiar.
A explicação para a normalização de tal prática individual e coletiva já demos acima, qual seja: o pensamento hegemônico relativista de nosso tempo deslocou as noções de bem e de mal de seus lugares firmes, rígidos e inflexíveis (valores que antes dirigiam o ser humano ao aperfeiçoamento espiritual), realocando-os numa espécie de esteira circulante, mas desgovernada, sem direção, diante da qual não sabemos mais em que degrau pisamos, se para subirmos ou descermos a escada moral de nossa existência rumo à eternidade.
Noutras palavras,
Ao olharem para fora do conhecido campo do Éden , Adão e Eva deixaram de cuidar de seu jardim de bem-aventurança eterna, fazendo com que suas flores, perfumes e esplendor se esvaíssem. No entanto, se esconderam quando o Bom e dedicado Jardineiro passou.
Ao olhar para fora dos limites de seu palácio moral, Davi, Rei de Israel, abandonou suas vestes pastoris, tão admiradas por Deus, largando fora do aprisco, ao relento, uma preciosa, justa e nobre ovelha, para ser devorada por feras e lobos. No entanto, ao ter seus intentos e atos questionados pelo Senhor, reconheceu seu erro imoral e trágico e arrependeu-se.
Nós, por outro lado, temos agido com mais indiferença em relação à consideração e ao reconhecimento de de erros e dilemas morais.
Ao olhamos além dos limites dos muros de nossas casas para desfrutarmos do entretenimento de realitys shows estamos a desejar intimamente alimentar nossa alma com a vida alheia, mais precisamente com o quintal e com os aposentos da casa ao lado. Dê-se o nome ou a justificativa que quisermos dar – que gostamos do jogo, das brincadeiras, de conhecer mais a personalidade e a intimidade de participantes que admiramos ou passamos a admirar etc., não importa, quando confrontados 2com o real valor de nossos interesses por esses programas não nos escondemos mais entre arbustos cheios de vergonha (como fizeram nossos primeiros pais), nem mesmo reconhecemos algum erro intencional que nos conduza ao arrependimento íntimo (como fez Davi, o grande Rei). Nem de longe passa algo dessa ordem por nossas cabeças.
Simplesmente nos alojamos dentro da casa alheia, sedentos por conhecer a vida do outro, espiando com nossos enormes olhos cada detalhe, cada movimento, cada palavra, cada intimidade de “vizinhos”, tudo com o respaldo de um programa de entretenimento (para não dizer de experimento psicológico vil) autorizado pelo declínio humano de nossa sociedade, cuja lei universal é: cada qual erija para si a sua própria lei moral com base em quaisquer critérios éticos eleitos subjetivamente e indiscriminadamente com o fim de saciar o apogeu de suas vontades desordenadas, insubmissas à razão e à ordem natural das coisas. A pena por afronta a essa lei global é dura, a saber: ninguém na face da terra está autorizado a emitir opinião, a dar conselhos ou mesmo tratar a perdição humana evidente, seja este um familiar, um amigo, um mestre, um sábio ou mesmo um profissional habilitado pelo conhecimento, sob pena de condenação ao crime de moralismo e ao estigma perpétuo de moralistica persona.
E o cultivo do jardim particular, como fica?
Ora, não está claro? Todos aqui em casa cultivam o mesmo jardim ao lado3.
T. Assinger

Notas:
- Diante da leitura de 2 Samuel 11 e 12 é possível extrair algumas consequências do pecado praticado por Davi contra Deus, Urias e Bate-Seba, por exemplo: profanação do leito matrimonial, bem como da alma do marido e da esposa vituperados; abuso de poder e confisco humano com fins orientados por prazeres baixos e efêmeros; perfídia e injustiça social, ou seja, aquele que tem tudo, inclusive poder hierárquico máximo no reinado da época, trai a confiança do servo e toma-lhe à força o único bem que tem; e homicídio camuflado de formalidade militar. ↩︎
- Esse confronto vem de uma observação sincera da realidade, principalmente por meio da meditação honesta das sagradas escrituras. A abertura para o confronto pessoal do pecado rumo à mudança de atitudes é íntima. Muitas vezes, porém, alguém pode servir de instrumento para esse nobre caminho de reconhecimento, coragem e conclamação e andança em direção à santificação, por exemplo o conselho de um amigo ou mesmo a afirmação de terceiros sobre a realidade objetiva de bem e de mal. ↩︎
- Reconhecer o mal particular não é o fim, mas o começo. É possível cuidar da alma como um belo jardim florido. Sinceridade, humildade e referência sólida e confiável da verdade são os elementos básicos desse árduo, mas possível empreendimento.
Hight eyes: jardim do pecado abandonado (texto em produção). ↩︎