A supremacia da verdade

Desentendimentos são humanos. Mas afinal, quem está certo nessas situações desalinhadas?

A verdade!

De qual dos lados, contestaria a maioria das pessoas?

De nenhum, A verdade não tem lado, ela se impõe, senão não seria o que é.

Como, não entendi? Quer dizer que a verdade se impõe e não dá ouvidos ao contraditório, ao plural? Que espírito opressor!

Sim e não.

Sim, porque à medida que a verdade é a expressão do ser em si mesmo, ela se estabelece de cima para baixo, de baixo para cima, de um lado para o outro e vice-versa, ocupando todo espaço do possível e do próprio ato que cria toda realidade ordenada e harmoniosa. Fora dela nada há que possa ser chamado de ser ou de real ordem de coisas.

Não, porque se tudo que há é a verdade, evidente que a pluralidade se ramifica dessa única fonte ou raiz. Portanto, todas as infinitas possibilidades de legítimas diversidades estão inexoravelmente em sintonia com o que as geraram: a verdade. Tudo mais que venha oferecer-se como plural, mas se contraponha ao início de tudo, não pode ser chamado de pluralidade, nem de parte diferente do todo ou de “lados de uma mesma moeda”, pois a verdade não admite contradição, não se justapõe ao erro, mas sobrepõe-se a ele como valor absoluto, tornando-o (o erro) não um valor oposto de igual medida, mas desvio do seu valor soberano. O que não é verdade se resigna evidentemente como desvio do ser, deturpação do real.1

A vida animal em sua inteligência natural que diga!

É de conhecimento comum que os elefantes podem voltar a um lugar distante que anteriormente tenham estado, mesmo após muitos anos.

Que memória, uns dirão!

Esses falastrões são os materialistas biológicos, como os neurocientistas contemporâneos em geral, que desprezando a transcendência e hipervalorizando a matéria, já que em um belo dia descobriram que a memória está localizada ou se manifesta em uma rede interconectada de regiões cerebrais, com participação primordial do sistema límbico para a formação e para a recuperação da função memorativa, confundem o meio (a memória) com a causa (a verdade) presente no prodígio animal.

Ora, se os elefantes conseguem chegar a um lugar conhecido depois de anos sem visitá-lo, tal virtude natural se dá não pela sua memória excepcional, que é mero instrumento de ação, de movimento, mas essencialmente pelo seu conteúdo: a verdade imaterial e não localizável no cérebro. Esta, sim, é a causa primordial da capacidade de lembrança dos elefantes que permite que possam encontrar o seu destino.

Explico melhor:
Se alguém humano sabe que um caminho é errado, que não conduz à meta, ainda está longe de conhecer o caminho certo, que leva à meta. No entanto, se alguém conhece o caminho certo, que o conduz ao alvo, conhece também todas as trilhas e andanças erradas, que o fariam perder-se durante a caminhada. Isso é o que acontece com os nossos “amigos” elefantes. Embora o meio “memória de elefante” seja o instrumento hábil e perfeito para a condução ao seu destino mesmo após longo tempo desde sua última visita ao local, esse mecanismo neurobiológico nada poderia fazer sem a verdade nele contida ou o conhecimento do caminho que conduz o elefante ao seu objetivo – o lago farto de águas refrescantes e que matam sua sede.


Dito de outra maneira, a verdade e o erro não podem ser valor positivo e valor negativo, como se fossem opostos de mesmo nível ontológico ou hierárquico, como o Yin e o Yang presentes na tradição oriental, pretensas energias contrárias e complementares que juntas conduziriam ao uno, à perfeição, à harmonia universal, à verdade. Não é assim. A evidência das coisas demonstra que o erro é o desvio da verdade, mas a verdade não é o desvio do erro. A verdade é o valor em si, basta em si mesma. O conhecimento do erro não nos diz nada sobre a verdade. Apenas revela a vivência de uma crise, cuja saída não é outra senão a verdade, que pode ser encontrada por aqueles que a buscarem de forma constante e sincera. Por outro lado, o conhecimento da verdade nos diz tudo sobre o acerto e também sobre o erro.


Tal qual pode se dizer da luz e das trevas. Elas não são realidades de igual valor ou justapostas. Na ausência de luz, por exemplo em um quarto completamente escuro (sem brechas de luminosidade) nada se vê, embora muitos objetos e móveis possam estar ali presentes. Basta um feixe de luz ou de claridade perpassado às frestas das cortinas ou entrando pelo vão debaixo da porta, para que as sombras comecem a aparecer. Indo além disso, a depender da intensidade da luz no ambiente, seja ela propiciada por uma vela que se acenda no quarto ou por uma luz elétrica acionada por um interruptor, os entes físicos ali constantes surgem, como em um passe de mágica, com suas formas e cores. Ou seja, a luz é o valor excelso, que a tudo manifesta; cabendo à escuridão o lugar de mera ausência da luz.


Reconciliações são humanas. Dependem do amor, da vontade de comunhão e de paz. Uma reflexão. Um gesto de abraço, um sussurro de perdão, um dar as mãos têm esse poder, essa habilidade: de reconduzir-nos novamente à graça da unidade, na diversidade.


E quanto à verdade, neste acerto da reunião, onde está?
Onde sempre esteve, de onde nunca se afastará: no início (como direção, para conduzir-nos a Deus), no meio (como caminho, para nos mostrar os valores derivados do uno, incausado, eterno e eficaz) e no fim de todas as coisas perenes – ou seja, no ideal, concreto e transcendental humano, comumente chamado de felicidade.

T. Assinger.

  1. Portanto, a ideia de que a verdade oprime só pode vir da ignorância provocada pelo desvio da ciência ou do conhecimento do ser das coisas, isto é, de como elas são em si mesmas, o seu quid sit ou quid est. Trata-se de um problema metafísico por excelência, equívoco conceitual que não é de se estranhar em nossa sociedade, visto que a ciência moderna expurgou a metafísica clássica (que estuda o ser das coisas) da estrutura e da forma de pensar contemporânea. Tal atitude no campo da “produção” do conhecimento, deixou-nos com um placebo, uma pseudo metafísica existencial, que produz seu autoengano querendo conhecer o mundo e o homem a partir e nos limites escassos e débeis dos meros fenômenos.
    Diante disso, é preciso dizer que a verdade, em seu ser devidamente conhecido, não tem como aprisionar a si mesma, pois ela é potência, ato e revelação puros e muito menos oprimir a nós humanos, já que cumpre-lhe em sua finalidade inescapável nos tomar pelas mãos para realizarmos de modo inequívoco e eficaz algo que se traduz como sendo a maior distinção e o maior propósito humano: o Conhecer. É admirável notarmos que ainda no ventre da mãe o bebezinho já dá sinais que vive e foi gerado para o conhecimento, pois tão logo surjam nele os primeiros sinais dos sentidos básicos que o conecte com o mundo ou com o ambiente que o cerca, já é capaz de receber sutil e delicadamente o carinho da mãe e do pai em seus gestos de amor para com ele. Uma carícia, um sussuro, um cantarolar etc. É realmente notável, até mesmo o movimento da mãe, em suas atividades diárias, ainda que esteja com o pensamento longe, em coisas aleatórias da vida, provoca no bebê um carinho na sensação de que está sendo ninado em um leve balanço.
    Sem enganos e confusões! Nascemos e vivemos para conhecer não só os fenômenos (manifestações daquilo que pode ser mais facilmente observado e medido em certo grau), mas a essência ou o ser das coisas. Essa é a nossa maior vocação e habilidade. Quanto melhor alcançamos a essência das coisas, mais pacificados e realizados intelectualmente e espiritualmente ficamos. Evidentemente, sem sombras de dúvida, a verdade liberta o homem e o conduz a tornar-se mais humano, pois o agracia com o conhecimento real e acertado do mundo e de si mesmo. ↩︎

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