Manifesto da moralidade familiar

Um dia após o país tomar conhecimento de uma incomum citação judicial feita a uma pessoa em um leito de UTI, dei a sorte ou o azar de presenciar um comportamento bastante sintomático de nossos dias.
Era uma senhora que aparentava ter uns 70 anos, vestida com roupa comum, de cabelos grisalhos e compridos, de passos calmos e tranquilos. Ela vinha lentamente em minha direção em uma estação de transporte público carioca.

Algo artificial em seu traje prendeu minha atenção e me motivou a observá-la enquanto ela se aproximava. Queria entender o que era aquilo em sua roupa, embora já suspeitasse se tratar de um adesivo contendo um dizer qualquer. Como eu pensava, ao chegar mais perto, numa distância segura, mas a olhos nus, pude constatar o que imaginara e passei a ler a mensagem que a idosa gratuita e orgulhosamente exibia no peito como se desejasse mostrar o óbvio a todos e salvar o mundo.

No plástico vermelho estampado em sua roupa estava escrito “SEM ANISTIA”.

Olhei para ela, olhei para o adesivo e percebi a falta de sintonia entre a mensagem carregada a tiracolo e sua portadora, uma pessoa comum e idosa. Fosse eu naquele momento um estilista, talvez não tivesse resistido em dar-lhe umas dicas de moda, para ajudá-la a harmonizar melhor sua imagem humana com vestes mais condizentes à nobreza de seu ser.

Normalmente, a experiência de vida traz um amadurecimento que aquieta a alma, tornando-a mais equilibrada, sensata, compreensiva, generosa e compassiva. A fórmula da maturidade, com seus dois elementos – tempo e vivências refletidas – tende a moldar-nos para melhor ou ao menos a nos deixar menos suscetíveis ao domínio cego de afetos nocivos a nós mesmos e aos outros, como o ódio interiormente alimentado e exteriormente declarado ao próximo ou ao semelhante, infelizmente como fazia aquela senhora.

No instante em que me deparei com essa situação de extrema dureza e implacabilidade para com outros iguais, vinda de uma pessoa simples e idosa, sobrevieram-me lembranças recentes de outros eventos comportamentais cotidianos, nos quais também estranhamente estavam presentes esse clima de hostilidade, severidade, e aspereza com o semelhante. A seguir, passo a narrá-los, com o fim de melhor compreendermos o fenômeno e vislumbrarmos pistas plausíveis que sirvam para trazer luz sobre esse “novo” modo de agir intolerante e agressivo presente em nossa sociedade.

Primeiro caso:
Em uma manhã de quinta-feira eu estava numa sala de espera médica aguardando para ser atendido. Enquanto esperava a minha vez, lia um livro de papel (quis ser redundante e grifar que o livro era de papel, pois nas andanças e nos espaços cotidianos atuais quase não se vê mais nada além de celulares e fones de ouvido). A Televisão da clínica estava ligada em um canal popular que passava um conhecido programa de entretenimento. Embora tenha tentado, não consegui me concentrar na pretendida leitura, pois o programa que aparentemente serviria para distrair o público com assuntos e imagens leves só trazia dramas de fatos concretos envolvendo maldades, crimes. Eu que, por opção, não estou mais acostumado a ver programas de televisão diários, principalmente os noticiários da velha imprensa, comecei a ficar aflito e com uma sensação esquisita, como se o terror (que estava sendo insistentemente apresentado ali no programa televisivo) estivesse me invadindo, sufocando meu interior naquilo que temos de mais básico e instintivo, nossos afetos e instintos, para estimulá-los a tomar as rédeas de minha percepção de mundo, de meus comportamentos, de minha vida. De repente, após o relato e a abordagem de um crime ocorrido pela internet, a jovem apresentadora de entretenimento popular subitamente chama a câmera para um close e dispara um sermão ameaçador direcionado ao criminoso ainda desconhecido e a tantos mais que pretendessem seguir os mesmos passos dele, dizendo mais ou menos assim: ” Nós estamos te vendo, você não está escondido, você é um criminoso, o que você fez é um crime e você vai ser responsabilizado por isso”. Depois da ofensiva, uma mexida no cabelo, um ajuste no sofá em que estava sentada, a respiração se acalma, o tom de voz e os olhos se aquietam e o programa de “entretenimento” continua
1.

Segundo caso:
Havia chegado à estação e aguardava o próximo trem para seguir minha viagem. No alto-falante da estação surge uma gravação dando recomendações aos passageiros. A orientação era para que se respeitassem os lugares priorizados para pessoas com condições especiais (gestantes, mulheres com crianças de colo, idosos, pessoas com dificuldade de mobilidade etc.). Até aí, nada demais. Bom seria que cada vez mais pessoas estivessem intimamente conscientes para perceber situações singulares e, consecutivamente, dispusessem-se ao exercício espontâneo de gentilezas várias. O que achei anormal foi o tom entoado pela locutora na gravação para passar a orientação aos usuários do serviço público de transporte coletivo. Quem é da área jurídica sabe que um dos princípios do serviço público é a cordialidade, o que também é praxe no setor de bens e serviços privados, como não poderia ser diferente. Afinal, o “cliente” ou o “usuário” de um serviço geralmente é bem atendido e até “paparicado”, pois o sucesso dos negócios, sejam estes uma empresa comercial ou uma carreira política eletiva, dependem do consumidor final, ou melhor, de seu sentimento de satisfação e sua consequente adesão ao empreendimento oferecido.

Voltando à analogia da estética da moda que usamos no início deste texto, o tom empreendido naquela gravação para trazer ao público uma simples orientação prática de maior gentileza entre os usuários do serviço não harmonizava com seu propósito. À medida que a orientação comportamental dada pela gravação aos usuários avançava, surgia gradativamente na voz da locutora uma tonalidade crescente de indignação, impaciência e rispidez para com o interlocutor, ou seja, com os passageiros do serviço de transporte coletivo, para que estes constrangidos pela entonação autoritária do discurso adotassem a ação sugerida. Ao ouvir a gravação, senti-me como um filho tolo sendo corrigido impacientemente pela sua mãe. O estranho é que no lugar da mãe impaciente estava um colérico prestador do serviço público e no lugar do filho tolo estávamos nós, manobráveis cidadãos, usuários do serviço.

Bastam os exemplos. Até aqui já temos “migalhas” de pão suficientes para sabermos onde leva esse caminho trilhado pelas várias chapeuzinhos-vermelhos que se multiplicam por aí. Em todas as situações mencionadas, um só e mesmo espírito se evidencia, qual seja: “vou dar uma lição pública nele(s)“.


Com seu adesivo “misericórdia jamais”, a idosa quer dar uma lição pública em supostos “golpistas”.
No seu surto policial, que teve por desfecho um “ataque súbito” verbal e gestual ao desconhecido criminoso da internet, a jovem jornalista e apresentadora, quis dar uma lição pública no provável estelionatário virtual, bem como nos futuros criminosos que, naquele instante estivessem vendo o programa e, eventualmente, alimentassem a ideia de fazer o mesmo ou algo semelhante.

No seu sermão impaciente, arrogante e irritado, a locutora da gravação entoada na estação de trem quer dar uma lição pública de educação básica aos usuários do serviço, curiosamente, filhos e filhas de inúmeros e distintos outros pais, mães e famílias.

Três elementos são percebidos na sintomática exemplificada acima:
a) uma caracterização comportamental moral homogênea, coletiva, pública e implacável de cidadãos comuns, diluídos na sociedade em geral, se portando como agentes de controle difuso de uma “mentalidade ou vontade maior” contra alvos determinados;
b) um desejo obsessivo ou patológico de punição, com o fim de exemplificar na sociedade a força da autoridade moral vigente;
c) a eleição de inimigos dessa moralidade a serem vencidos, exterminados, tendo em vista a absorção pelos indivíduos sociais de valores transculturais irradiados internacionalmente mediante diversos instrumentos de transmissão de informações convenientemente dirigidos.

Esse estilo comportamental homogêneo, coletivista e publicamente manifesto, com traços de frieza, indiferença e até de impiedade para com o próximo ou o semelhante, como os narrados aqui, não se cria em casa, com a moralidade ensinada por pai, mãe e familiares. A moral construída no seio familiar tende a ser mais equilibrada, humana e compassiva, tendo em vista alguns aspectos importantes como:

(1) parte do núcleo básico ou mínimo da sociedade para o maior – na família, a moral constitui-se de baixo para cima. Do núcleo elementar da sociedade humana forma-se o indivíduo moral para conviver no estrato social mais alto. Sendo assim, indivíduos plurais formados nos ambientes familiares diversos e imediatos saem ao encontro público de diferentes outros indivíduos, tornando suas moralidades mais “humildes” ou “limitadas” natural e organicamente no confronto com variados espectros de moralidades de diferentes núcleos familiares. Evidentemente, há um equilíbrio maior na atuação moral em sociedade, quando ela se estabelece individualmente na base familiar e se manifesta no campo aberto e de maior amplitude, representados pelos incontáveis espaços sociais presentes na sociedade, onde é preciso que o indivíduo aprenda a se colocar ou a se encaixar em meio a outros tipos de formações morais individuais.

(2) desenvolve-se em ambiente natural de amor – excluídosos casos disrruptivos (que não deveriam acontecer) de lares carentes ou ausentes de cuidado e afeto, geralmente o lar é o lugar onde uma criança, um adolescente, um jovem, um adulto e um idoso terão naturalmente o amor2 de seus pais, descendentes e/ou familiares, necessário para que o ensino moral (noção de certo e errado) seja “azeitado” (humanizado) no que tange ao seu processo formativo. Por exemplo, em um ambiente familiar comum, onde existe cuidado e afeto (que é o caso das famílias em geral), a lição de certo e errado se dá por meio de um processo pendular, pelo qual ora se é firme e não se deixa passar o comportamento considerado inadequado àquela família, ora se abranda a intransigência pedagógica e admite-se determinado comportamento por considerá-lo neutro, indiferente, ou mesmo estrategicamente, por entender que naquele momento a repreensão não é a melhor forma de educar. Essa flexibilidade na educação moral de um indivíduo em formação só é possível porque no espaço da família naturalmente subsiste e vivencia-se o amor. Ora, que pais querem o mau a um filho. Até mesmo os maus sabem dar coisas boas aos seus, diz as sagradas escrituras (Mt.7:11-12).

(3) tem como elemento constitutivo a compaixão cristã – Em todas as sociedades a religião é um aspecto humano fundamental que se forma e tem lugar no núcleo familiar. Em nosso caso, na cultura ocidental, temos como baluarte a doutrina cristã, que tem por princípios: a sinceridade, a doação, a perda ou o sacrifício pessoal em favor do semelhante (o amor vicário), a esperança material e transcendental e o perdão, este último como virtude cardeal ou aglutinadora de todos os demais princípios. É o que diz as palavras de Jesus Cristo na oração do Pai Nosso. “Pai, “perdoa-nos pelas nossas ofensas, assim como nós perdoamos aqueles que nos têm ofendido”. Vejam, no exemplo do “Pai Nosso” tudo está bem amarrado na ação voluntária e intencionalmente sincera do perdão dispensado ao ofensor, de modo que todas as bem-aventuranças pretendidas pelo indivíduo, inclusive a comunhão tão almejada com seu Senhor e Amado Deus, dependem para se efetivarem, da habitualidade do perdão.

Ora, conforme os atributos anteriormente indicados, a moral que se constrói dentro do lar, no ambiente familiar, tende a erigir uma moralidade repleta de: (1) humildade, limites e equilíbrio (atributo 1); amor e flexibilidade (atributo 2); e sinceridade, sacrifício e perdão (atributo 3).

Consecutivamente, diante desses pressupostos, podemos extrair logicamente que a moral que se forma em casa é favorecedora do convívio pacífico e positivo entre os indivíduos na sociedade, bem como da interação interpessoal harmoniosa e compassiva entre diferentes.

Por outro lado, a moral que sai de casa para estudar fora, resume-se a isto aí que temos visto todos os dias em nossa sociedade. Sinônimo de frieza, intransigência, impiedade, incomplacência e desumanidades coletivas, ainda que aparentemente e superficialmente lustradas de bem ou de justiça.

“Dividir para conquistar” é o lema moral de nossos dias.

Néscios, porém, que somos, não percebemos que esse slogan ao qual aderimos só nos lega a divisão, isto é, o ringue para brigarmos e nos machucarmos mutuamente (negros x brancos, mulheres x homens, pobres x ricos, povos originários x povos decorrentes movimentos coloniais expansionistas, natureza ou clima x atividade econômica etc.). A conquista ou a vitória, prometida nesse bordão, não se dirige a nós, pois ela já está garantida para aqueles que compraram nossas mentes, nos colocaram na arena de confronto, apostaram na queda de ambos os lutadores envolvidos e aguardam apenas a liquidação dos títulos do jogo desumano que empreenderam. Quando juntos cairmos na lonanocauteados , finalmente, o lucro de nossa ruína será pago e repartido entre os apostadores dessa guerra cultural entre semelhantes, forjada e interminável.

“Estudantes morais de todo mundo, separem-se, regressem às suas casas e alfabetizem-se de novo”.

Um futuro mais doce e harmônico entre os individuos sociais depende desse retorno ao lar.

T. Assinger.

  1. Nese primeiro caso cotidiano muitos podem pensar “mais qual o problema de uma jornalista e apresentadora se dirigir a uma câmera para expressar sua indignação em relação a um crime praticado na internet contra pessoas comuns?” Primeiro, temos que considerar que ela não se voltou ao telespectador (seu público) para orientá-lo sobre os cuidados e precauções que todos devem ter nas suas relações havidas nos ambientes virtuais e, a partir daí, desabafar com o próprio público, sobre o ocorrido, como fazemos no dia dia com um amigo. A apresentadora se dirigiu ao próprio criminoso (essa é a questão central) chamando-o para uma dura fiscalizatória ou policialesca, o que não é papel de um profissional de jornalismo, muito menos de entretenimento. Segundo, porque o que se quer destacar aqui é o sintoma ríspido e implacável contra um alvo determinado humano qualquer, que ora pode ser um criminoso real (como parece ser o caso narrado), ora pode ser um homem ou uma mulher comuns, sem envolvimento algum com crimes. Inclusive, é ai que reside o risco desse tipo de comportamento público de alguém cujas expressões e manifestações têm amplo alcance social. Precisamos entender que o criminoso como alvo do “ataque” direto verbal feito pela apresentadora funciona apenas como uma cortina de fumaça para aos poucos possibilitar que mais pessoas na sociedade se acostumem e repliquem esse comportamento de repúdio (como costumam dizer) ao outro ser ou grupo humano que vier a ser perseguido pela manipulação da opinião pública. ↩︎
  2. O termo amor empregado no texto remete-nos ao cuidado (físico, emocional, intelectual e espiritual) e a afetividade natural de pais e filhos como fator pedagógico moral. ↩︎

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