A árvore do amor

Foto: Justin Lane

Vachellia Tortilis era o seu nome.

Aquela destemida e despenteada árvore subsaariana testemunhara que o bem supera o mal quando presente o divino e vicário amor paternal. Um fragmento, um estilhaço, uma parte solta e mal compreendida deste amor havia feito Salif um prisioneiro atado àquela árvore nascida no clima árido tropical de uma região rural da Mauritânea.

Eles estavam sempre juntos, a árvore vachellia e o jovem Salif. Quando o menino sumia, seus pais e todos da aldeia sabiam onde procurar: “só podia, lá está ele”, debaixo da frondosa e exuberante árvore, a pensar, a sonhar, a contemplar. Mas, o que?

“Volta e meia” Salif era indagado sobre o motivo de correr sempre para perto de Vachellia, momentos em que respondia entusiasmado:  “gosto de estar lá, junto a ela, minha amiga, lugar de paz e de sossego, onde sou constantemente convidado a meditar, almejar, transcender e a sublimar.     

Certo tempo, uma ferida proveniente de um resvalo em espinhos se desenvolveu na perna do garoto mauritano, gerando uma grave e exposta infecção. Salif havia subido nos galhos altos de Vachellia e se cortado em um de seus espinhos.   

Na tradição daquele povoado, uma eventualidade dessas não podia ser outra coisa senão uma maldição, um castigo dos deuses ancestrais.

O menino amado e querido, repentinamente amaldiçoado, não poderia mais andar livremente nos espaços comuns do povoado, nem mesmo ter contato com qualquer um dali, sejam estes amigos, parentes ou mesmo pai e mãe. Afinal, maldição é maldição, pega e não tem cura!

 Seu pai, que era o chefe e o líder espiritual daquele aldeamento, em prantos por extremo sofrimento e desilusão, encarregou-se de conduzir o filho para a árvore de que tanto gostava (como a atender-lhe um último pedido e a realizar-lhe sensivelmente um último bem), ali o amarrou e o deixou às margens do território da aldeia para que se cumprisse o seu fim.

Naqueles arredores estava de passagem um missionário cristão, humilde de coração e cheio de amor para dar. Ao saber da situação do jovem Salif, dirigiu-se ao pai e chefe da tribo e pediu permissão para encontrar-se com o menino, pois queria ajudá-lo.           

Após muita insistência, embora não fosse comum naqueles costumes que um chefe e líder religioso revisse suas decisões, o pai, movido de íntimo amor e compaixão pelo filho disse-lhe: é muito arriscado, trata-se de uma maldição, mas pode ir.

 Seguiu então o missionário. Deparando-se com Salif, perguntou ao jovem: “posso me aproximar e ver de perto sua ferida?”. Imediatamente, Salif o interpelou dizendo: “há uma maldição sobre mim, não seria próprio se aproximar, muito menos tocar-me.”

 O missionário fez um aceno com a cabeça como quem está a dizer “confie, apenas confie”; e lá foi ele; não apenas a se aproximar, mas a abraçar-lhe, cuidar de sua ferida e orar com ele. Um “detalhe”, uma “sorte”, o andarilho cristão era também um exímio e experiente enfermeiro.

A rotina, quer dizer, o ritual empregado, sucedera por dias, semanas e meses. O missionário cuidava da ferida de Salif, levava-lhe alimento, roupas limpas e agasalhos, fizera para ele uma cabana, comiam, conversavam, oravam, choravam e aos poucos começavam a rir juntos.

Em dado amanhecer, naquela província Mauritana, naquele pé de árvore chega a cura como resultado do amor, da coragem, do sacrifício e do partilhar de si mesmos e do que naquele processo fora sendo alcançado e revelado por Deus.

 As amarras foram cortadas, Salif pôs-se de pé, sem ferida, sem dor, íntegro e diferente, pois viu o milagre e dele provou, o amor paternal e fraternal de Deus.

Retornaram, então, ao centro da aldeia. Vinham lá, como uma espécie de miragem desértica e subsaariana, um cristão e o Salif.

Ao deparar-se frente à frente com seu filho intacto e novamente saudável, como pai, chefe e religioso, “debruçou-se” de joelhos e rosto ao pó para dizer: Quem é este que até maldição transforma em bênção?  O Deus que amou, cuidou e salvou meu filho da morte, curando sua ferida e dando-lhe vida, esse, a partir de hoje, é e para sempre será o meu Deus.

Salif, que significa fascinante ou precursor, por sua íntima vontade de contemplar a Deus e por sua experiência marcante de vida, iniciou algo no mínimo esplêndido, tornou-se um córrego propício para que as águas eternas chegassem aquele vilarejo distante, à sua família, vindo a banhá-los de amor, fé e salvação. 

Vachellia Tortilis, que curiosamente desenvolve espinhos para se proteger de animais herbívoros como girafas e gazelas, terminou acidentalmente por trazer a Salif uma momentânea dor, que, ao fim, resultaria no processo necessário para o desenvolvimento de profunda, generosa, permanente e alegre realização.    

Logo, por providência e graça, Salif e Vachellia puderam voltar aos dias bons e estimáveis de sua fiel amizade.

Não obstante, aqueles novos encontros estavam marcados por uma sutil e consistente diferença:

Em Vachellia, haviam caído os espinhos, brotando no lugar belas e amarelas flores.

Em Salif haviam caído as escamas, permitindo-o finalmente com sua vida contemplar a Deus. O sublime, antes longe, almejado e buscado, tornou-se próximo, íntimo e familiar, um vívido, elevado e formidável encontro, diariamente desfrutado. 

Thiago Assinger

Foto 2: David Labno

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